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Opinião

Ciência e Inovação como forma de sair da crise

Carlos Moedas e Pascal Lamy *

Precisamos, mais do que nunca, do financiamento da União Europeia para a Ciência e Inovação... ainda assim, o Conselho pretende cortar no Horizon Europe

Em 2014, a Comissão Europeia ofereceu um prémio de 2 milhões de euros a uma desconhecida empresa biofarmacêutica alemã, a CureVac. Na altura, o prémio constituía uma forma de ajudar a empresa a prosseguir uma abordagem completamente nova em relação ao desenvolvimento de vacinas. Esta abordagem era bastante arriscada e, portanto, só os fundos públicos conseguiriam ajudar. Um ano mais tarde, a Fundação Bill e Melinda Gates investiu na empresa que, posteriormente, se tornou num unicórnio de milhares de milhões de euros. O fundador e CEO, Ingmar Hoerr, recorda sempre que, sem o financiamento da UE, a sua jornada teria sido muito diferente.

Avançando para 2020: os esforços pioneiros da CureVac no sentido de produzir uma vacina contra a covid-19 significam que, atualmente, a empresa está a desenvolver algumas das tecnologias mais significativas e valiosas de que há memória. Estando pendentes os resultados dos ensaios seguros e eficazes, a UE anda em conversações preliminares com a CureVac para comprar mais de 400 milhões de doses de vacina contra a covid-19.

Os investimentos da UE em investigação, inovação e ciência demonstraram, em diversas ocasiões, que são prescientes e transformadores. O problema é que somos muito maus a contar as nossas histórias. Embora nem todos os investimentos sejam um êxito estrondoso como o financiamento à CureVac (é necessário tolerar os fracassos por forma a promover a inovação), faz simplesmente sentido fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para apoiar os investigadores, inovadores e empresários, cujo trabalho e criatividade ajudam a construir um mundo melhor, mais saudável e mais próspero.

Antes do coronavírus, verificou-se um consenso em Bruxelas e nas capitais do continente de que era chegado o momento de reforçar o orçamento do Horizon Europe, o principal instrumento financeiro da UE para a investigação e inovação (I&I). Por esse motivo, estamos muito orgulhosos pelo facto de, em 2019, a Comissão Europeia ter proposto atribuir 100 mil milhões de euros ao Horizon Europe para o período de 2021 a 2027.

Esta semana, uma vez que o Conselho Europeu de 27 Chefes de Estado e de Governo se reúne para uma sessão especial, temos uma questão: mas porque é que o Conselho Europeu pretende cortar o orçamento do Horizon Europe para 90,9 mil milhões?

Esta reviravolta é uma ideia terrível. Todos nós nos estamos a adaptar a formas completamente novas de trabalhar, frequentar a escola, fazer compras e passar o tempo livre, sem esquecer de encontrar uma cura para um vírus que não existia nesta altura no ano passado. Combine esta experiência de resposta pandémica global em tempo real ligeiramente aterradora com o facto preocupante de que as empresas privadas em dificuldades estarem a cortar nos seus próprios orçamentos de investigação e, nos últimos meses, a necessidade de mais financiamento público para a I&I tem-se tornado mais, não menos, urgente.

Ao longo dos anos, trabalhámos em estreita colaboração com mulheres e homens de universidades, empresas e do governo cuja visão e dedicação constituem a base do ecossistema de inovação sem precedentes na Europa. Não importa se a vacina virá da CureVac ou se será resultado de outros esforços idênticos atualmente em curso, temos confiança nos cientistas e inovadores da Europa. Mas mesmo depois de derrotarmos a doença, continuará outra ameaça ao nosso bem-estar a longo prazo – a mudança climática.

Na semana passada, a Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, reiterou no seu discurso do Estado da União Europeia a importância de uma economia digital ecológica, que nos possa ajudar “a ser a força que nos impele rumo ao mundo de amanhã”. Propôs que a UE aumentasse a sua meta de redução das emissões de gases com efeito de estufa em 55 por cento, abaixo dos níveis de 1990, ao longo da próxima década.

Este é um objetivo necessário louvável. Esta medida ajuda-nos a atingir a neutralidade climática em 2050, a base do Acordo Verde Europeu. O aumento da meta é também um reconhecimento tácito do crescimento do apoio público em relação à ação contra as alterações climáticas. Na próxima sexta-feira, está planeado, na Europa e no mundo, um grande protesto climático global, liderado por Greta Thunberg e seus pares.

No entanto, sem mais investigação e inovação, é certo que a promessa do Acordo Verde Europeu ficará por cumprir, os apelos dos nossos filhos e netos ficarão por atender. De acordo com a Agência Internacional da Energia, mesmo que utilizássemos todas as tecnologias que nos são atualmente disponibilizadas (solar, eólica, eficiência energética, etc.), ainda assim não conseguiríamos atingir as reduções das emissões necessárias para diminuir os riscos relacionados com as alterações climáticas, como incêndios, secas, tempestades intensas e degelo dos glaciares.

A Presidente von der Leyen sensatamente aprovou a atribuição de 30 por cento dos fundos da UE a vários programas climáticos. Do mesmo modo, pretende assegurar cerca de 37 por cento dos fundos de recuperação económica da UE para ajudar a cumprir os objetivos do Acordo Verde. Visto que muitos destes fundos vão diretamente para os Estados-Membros, os governos nacionais têm de cumprir a sua parte do acordo. Têm de garantir que os seus próprios programas de recuperação ajudam a cumprir as prioridades urgentes da UE, como o Acordo Verde.

Sejamos claros: desde uma pandemia global que está a devastar a nossa saúde pública, passando pelas economias dos Estados-Membros que estão à beira do desastre, até à contínua catástrofe que é a mudança climática, os desafios que enfrentamos são assustadores. Quando a UE aumentar o financiamento para a I&I, estará essencialmente a demonstrar confiança na sua capacidade de estar à altura destes desafios. Mas, e se a UE não cumprir? As pessoas ficarão mais céticas, convencidas de que a UE não só não está preparada para a tarefa, como também não é digna do seu apoio.

Não nos podemos dar a este luxo. Como disse recentemente Jeremy Farrar, CEO do Wellcome Trust: a única forma razoável de sair desta pandemia é a ciência. Nós vamos ainda mais longe, dizendo que a única estratégia plausível para os nossos desafios globais atuais é a Ciência e a Inovação.

* Pascal Lamy é Presidente Emérito do Instituto Jacques Delors, um grupo de reflexão estabelecido em Paris. Foi diretor-geral da Organização Mundial do Comércio, de 2005 a 2013. Carlos Moedas faz parte do conselho de administração do Instituto Jacques Delors, um grupo de reflexão estabelecido em Paris. Foi Comissário Europeu para a Investigação, Inovação e Ciência, de 2014 a 2019

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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